quarta-feira, 11 de julho de 2012 às 00:52

As Crônicas de Gelo e Fogo - A Dança dos Dragões: o patamar inexpugnável de mil personagens

Nota 4/5
As Crônicas de Gelo e Fogo - A Dança dos Dragões
A revista Superinteressante (ed. 276 / mar-10) trouxe um texto do Alexandre Versignassi sobre ebooks readers, em especial Kindle e iPad. Ele escreveu: "Quem gosta de ler sente um afeto físico pelos livros. Curte tocar neles, sentir o fluxo das páginas, exibir a estante cheia. Uma relação de fetiche. Amor até." Eu me enquadro nesse grupo. Por mais que aprecie dispositivos eletrônicos, prefiro livros "de verdade". Gosto de sentir a textura, o acabamento, algum detalhe em relevo. Quando compro um volume novo, passo horas apenas dedilhando as páginas, admirando a capa...

Por essa minha fixação, fiquei triste ao receber a primeira edição de A Dança dos Dragões, quinto capítulo da saga As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R.R. Martin. Em março a Editora LeYa havia divulgado uma versão fantástica, valorizando a belíssima arte do ilustrador Marc Simonetti. Mas a versão final que chegou às livrarias em julho veio com um problema de enquadramento. A personagem Daenerys foi jogada para a orelha. Sobrou o dragão negro, que sozinho perdeu o sentido. Como castigo da khaleesi, o livro estava com um capítulo a menos, obrigado recall de 150 mil exemplares!

Mas sejamos claros: As Crônicas de Gelo e Fogo é uma história acima de qualquer uma dessas bobagens. Fosse escrito no chão com carvão, a história despertaria a mesma fome de leitura que assola os fãs. Pra mim George R.R. Martin é um demônio, fazendo malabarismo com mais de mil personagens em caminhos totalmente díspares. Bem verdade que no caso desse livro, assim como o anterior, o autor agrupa o pessoal. A Dança dos Dragões foca os acontecimentos ao longo da Muralha e no outro lado do mar, incluindo a volta do anão Tyrion, Jon Snow e a Mãe dos Dragões.

O livro começou muito animado, com inspiradas histórias de Rurion e Daenerys. Logo percebi que os dragões estão se transformando na chave de tudo. Por sinal, o autor agora dedica boa parte da obra aos eventos sobrenaturais. O que melhor assume esse papel é o menino aleijado Bran. Muito boa a aventura na companhia dos cavaleiros mortos-vivos, das filhas da floresta, gnomos, árvores falantes e vidente verde. Neles a história desperta mais interesse pelo senso de descoberta. Enquanto os demais personagens estão envolvidos na burocracia de seus pequenos mundos, aqui o autor pode extravasar toda sua criatividade clássica.

Apesar de limitado geograficamente, o personagem que mais evolui em A Dança dos Dragões é o Jon Snow. Demorei para aceitar a liderança do bastardo. Novo demais. Foi difícil acreditar, mas o jovem Comandante se saiu um excelente líder. Duro para decisões que contrariam o desejo da maioria; perspicaz para engenharia financeira que alimenta a tropa; corajoso para apostar as fichas na lealdade de desconhecidos; impetuoso para enfrentar o poder de um rei; estrategista para multiplicar guerreiros e fortificar as defesas; e, além de tudo, benevolente para diferenciar selvagens de caminhantes brancos. Por fim até casamenteiro o corvo se transformou.

Pena que se meteu numa emboscada ao ceder a Patrulha da Noite às ambições conquistadoras do Rei Stannis. Como ele dizia, os corvos não deveriam tomar partido. Também achei estranho o estratagema envolvendo Mance Rayder, o Rei-para-lá-da-Muralha. O personagem é bom demais para ficar sendo jogado para as entrelinhas. Tinha curiosidade em conhecer melhor suas ideias e seu passado. Do meio para o fim o autor parece ter se arrependido do que fez, tentou consertar e acabou piorando a situação.

O vira-casaca só não está pior que o anão Tyrion. Dono dos melhores e mais divertidos capítulos do livro, o baixinho Lannister emenda uma cilada atrás da outra. O trecho em que ele navega nas águas negras do rio Mãe Roine lembra muito o livro "A Viagem do Peregrino da Alvorada", da saga de Nárnia contada pelo C.S. Lewis. Há também uma passagem por mortos submersos que lembra "O Senhor dos Anéis", do J.R.R. Tolkien. Para completar temos o nascimento de um novo personagem e a quase-morte de outro através das mãos de homens de pedra. Realmente incrível.

A Dança dos Dragões também tem seus momentos de comédia. Muito engraçado o povo inventando histórias malucas sobre os protagonistas do jogo dos tronos. As mais hilárias mentiras envolvem Daenerys. Falavam que ela alimentava seus dragões com bebês humanos, que banhava em sangue para manter a pele lisinha, que fazia sexo com cavalos e todo tipo de bizarrice divertida. Também a ideia de uma cara-metade para o anão é interessante. A cena em que o casal anão é oferecido em leilão como escravos de reprodução é impagável.

Quem não gosta de piada é a a sacerdotisa Melisandre. Nesse livro ela ganha um capítulo muito bom. Nele a personagem é humanizada através de fraquezas e erros. Nada como entrar na mente dos personagens para descobrir seus medos e motivações. Eu até comecei a gostar mais dela. A princípio achei chocante os sacrifícios de sangue ao deus R'hllor. Mas depois de ler um pouco sobre religiões, vi que esse mesma tipo de manifestação ocorre em diferentes culturas ao longo dos séculos. Ou seja: nós somos tão bárbaros quantos os westeros.

Os rituais buscam a purificação. Mas existe outra maneira de alcançar essa bênção: o calvário. O principal exemplo nesse arco da história é o príncipe Theon. Depois de assumir o papel de vilão nos demais livros, o rapaz sofre uma sucessão de mutilaçõe e torturas. Com tanto sofrimento físico e moral, o garoto de ferro reconquista o carinho do leitor. Essa estratégia do autor é igual ao que foi feita o regicida Jaime no livro anterior. Nos dois casos podemos assumir que houve um processo de redenção, ficando a alma de ambos preparada para o destino certo.

Alheia a essa pequenices mundanas está Daenerys Targaryen... Tudo no livro gira em torno dela. Da capa ao capítulo final. Sem dúvida o desfecho mais esperado foi o encontro da Filha da Tormenta com seu poderoso dragão negro na Arena Daznak, templo de luta da cidade de Meereen. Diante de milhares de pessoas a Rainha teve que escrever sua própria história. E o resultado não decepciona. O encontro entre mãe e filho rebelde é emocionante. Mesmo cozinhando tanto esse capítulo, valeu a pena esperar.

A sensação de cera é o risco que o escritor assume ao decidir contar uma história tão longa. Da mesma forma é a tática de matar todos os personagens principais. Existe um efeito positivo imediato, mas a médio prazo atrapalha o desenvolvimento. Isso fica claro nesse livro. No último quarto os novos protagonistas já assumem as rédeas dos principais acontecimentos, causando confusão na cabeça do leitor. Fora isso, A Dança dos Dragões é um excelente livro, entretenimento de altíssimo nível. Com ele, George R.R. Martin eleva o modelo literário a um patamar inexpugnável.

Ficha técnica:

Título original: A Song of Ice and Fire: A Dance with Dragons
Título no Brasil: As Crônicas de Gelo e Fogo - A Dança dos Dragões - Volume Cinco
Editora: Leya
Autor: George R. R. Martin
ISBN: 9788580444933
Ano: 2012
Edição: 1
Número de páginas: 872
Acabamento: Brochura
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